Negrinha





O espetáculo “Negrinha”, um conto de Monteiro Lobato (1927), trata da história de uma criança órfã nascida na senzala, que não tem nome e é chamada de Negrinha, em alusão à cor de sua pele. Relatando situações de maus tratos e humilhações. Denuncia um Brasil preconceituoso, que mantém preconceitos e segregações ainda nos dias de hoje. A aparição de uma boneca leva esta criança a descobrir-se pessoa, modificando o curso da história. Com iluminação de velas e música ao vivo, o clima de intimidade a ancestralidade permeia todo o espaço cênico. 





Fotos: Maira Brigladiori



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CRÍTICAS
Resenha Cênica

Negrinha
Os lastros escravocratas de um Brasil profundo e ancestral ainda povoam, lamentavelmente, o cotidiano atual. Seja na repetição de práticas irrefletidas, no separatismo aceito com “naturalidade” e desvelado nas anedotas, nas manifestações acerca do sistema de cotas, no trato de questões que ainda tropeçam no que é politicamente correto e no que é usual pelo costume ou afetivo em relação à diversidade étnica, como também de gênero e outras tantas mais. Desde nominalismos, até formas de tratamento e funções de servilismo, que tem sua raiz na maldade praticada com isenção de culpabilidade ou mesmo despudoradamente, como prática arraigada na cultura, nas tristes tradições de um passado recente e presente nos detalhes e no velamento dessa mesma cultura, que demonstra que o racismo no Brasil é enrustido e, portanto, muito mais difícil de ser combatido em seus interstícios.
Dentro desse panorama, a obra do escritor Monteiro Lobato pode ser uma fonte muito rica, tanto pela perspectiva da criação como do universo da prática segregadora. O escritor, sempre aclamado, atualmente se converteu em uma figura controversa. Porém, deve ser visto como um homem de seu tempo, que deixou uma vasta obra e que povoou o imaginário de tantas gerações que aprenderam a amar os livros com seu legado.
Sua obra, ainda que crie polêmicas por conteúdos raciais de sua época, não pode deixar de ser lida e interpretada, ainda que com parcimônia e olhos atentos, mas também com reconhecimento pelo inegável talento e capacidade de encantar desse autor. O conto Negrinha traduz esse momento onde a crítica se funde com a prática e onde a naturalidade do relato se revela, a partir de fragmentos de outros tempos, como o desmascaramento de um país que carrega esse estigma de um passado de memórias subterrâneas de crueldades praticadas, possível rizoma de tantos entraves e da multiplicidade de preconceitos arraigados na falta de discernimento e nas repetições irrefletidas.
Com maestria e grande sensibilidade, a diretora teatral Paula D’Albuquerque, nos apresenta uma adaptação do conto Negrinha, que descortina esse cotidiano de sinhás e mucamas, adentrando o universo infantil. Onde a delicadeza se funde na rudeza das práticas abomináveis e das diferenças abissais. Negrinha é um conto cênico, que carrega uma denúncia e uma revelação, de que o tempo deixou marcas e resíduos indigestos. É impossível assistir sem pensar nos excluídos da história, nas crianças em condição de servidão, que têm sua infância roubada, nas diferenças, naqueles que quase não olhamos, pois sua condição nos afeta a ponto da cegueira. Mudam os algozes, mas não mudam as vítimas, seja no trabalho escravo, seja nas esquinas ou nas narrativas de abusos por toda parte, na relação com empregados domésticos, nas estatísticas da violência, e na indiferença que ainda persiste. Por isso a peça se mostra tão atual e tão comovente. Com um
elenco composto por atores negros e com um repertório musical apuradíssimo e de pesquisa, a peça é um retrato da identidade brasileira, pois alia doçura e acidez e promove indignação e reflexão, permeando diferentes tempos históricos. Mesclando elementos que passeiam pela estética do barroco, pela atmosfera da senzala e da casa grande, pelas religiões católica e também pelas africanas no sincretismo de santos e orixás, tão singular, pelos hábitos, pelos mitos e ritos de um Brasil de outrora, ainda presente, ainda persistente.
O público, inserido no contexto, é parte da peça e participa com sentimento de pertença e interação, onde todos os sentidos são contemplados. A peça é um convite ao passado, para que possamos olhar e compreender o que no presente ainda persiste e não deveria mais ter lugar. Mas dentro dessa atmosfera lúcida e reveladora existem muitas camadas que perpassam os ritos de passagem e de transformação, como um réveillon na praia, um rescaldo da somatória do que veio a ser nossa cultura. “Negrinha” é uma forma de entender o que ficou em baixo do tapete desse país de tantas desigualdades.

Adriana Gianvechio é historiadora e crítica de arte pela USP.



Teaser Negrinha:
https://www.youtube.com/watch?v=X2cwjSDjDN8&list=TLpy6hJ91fuYIhh0gqPiKevQZzQykFfpsI















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